Caro leitor, é neste dia ensolarado que o Diálogo Entrópico volta de um prolongado hiato. As razões são muitas, e irrelevantes para serem comentadas, então vamos direto ao assunto. Este é um tema que vai esbarrar na antropologia, mitologia e na ficção.
Um dos motivos da escolha do objeto é a leitura do livro básico do Mundo das Trevas, da editora americana White Wolf,
publicado no Brasil pela Devir Livraria. Este é um livro de RPG (algo sobre o qual vou falar mais dia, menos dia por aqui) sobre pessoas comuns que descobrem um mundo sombrio por trás da normalidade aparente. Pra quem conhece, pense no seriado Supernatural (não consigo escrever Sobrenatural...), com todos os seus monstros escondidos e mistérios sujos encobertos.
A leitura do livro e o tema do jogo me lembraram bastante (e talvez, apesar de não explícito, pode ter sido a intenção, ou parte dela, mas certamente uma das inspirações) o clima dos contos de H.P. Lovecraft, conhecido pelos mitos Cthulhu. Esta série de contos fala sobre os Antigos, deuses monstruosos que vivem escondidos, mas que a humanidade ainda se lembra por meio de antigas culturas e rituais sinistros. O que há de interessante na obra de Lovecraft é que a humanidade não tem chance alguma contra os Antigos. Qualquer um que tente entendê-los ou desafiá-los acaba louco, inútil.
A maior semelhança por mim notada entre as duas obras é o segredo. Segredo porque o conhecimento, nestes lugares, é fundamental e escondido, mas infinitamente perigoso e fatal. A própria mente humana se revolta ao notá-los, e é por isso que muitos preferem ignorar, inconscientemente. É até divertido notar que os autores de ambas as obras se baseiam no medo do escuro e do desconhecido presentes na humanidade (normalmente associados ao nosso passado numa Terra assolada por predadores noturnos, em que a união e o fogo eram os únicos consolos dos primeiros homens) e lhes dão uma nova roupagem: ainda nos lembramos das criaturas terríveis que estão lá fora, e já nos dominaram.
Bem, temos algo aqui. Certo tipo de conhecimento é perigoso e proibido. Isto é algo que ainda vemos, e numa outra esfera ligada à religião: quem não se lembra da história de Adão e Eva? Ao ingerirem a fruta do conhecimento, discerniram o bem do mal e foram expulsos do Paraíso. Antes que se comece a polemizar demais, vamos analisar a história de acordo com seu simbolismo. Mais uma vez digo, é uma análise amadora, caro leitor.
O simbolismo dessa história pode ser percebido em alguns níveis. Primeiro que, em eras mais primitivas o conhecimento era algo incrivelmente importante e as religiões, que controlavam abertamente o mundo, não desejariam que as pessoas conhecessem muito, o que talvez levaria a descrença e revolução. Hoje em dia o conhecimento ainda é visto como libertador, uma herança de várias revoltas e especialmente do Iluminismo, mas a noção de que ele pode destruir uma crença é um tanto quanto polêmica. Meus comentários, então, nesse sentido, se voltarão a épocas mais estereotipadas (precisamos ter algum ponto do qual falar, não é verdade? Ou então eu preencheria o texto com ressalvas e desculpas). Em resumo, a erudição era encarada como algo perigoso e que deveria ser mantido longe das massas.
Outro nível, mais ligado à antropologia, é a percepção humana da perda da inocência. Assim como as crianças crescem e, ao se tornar adultos, geralmente lamentam o que perderam, a raça como um todo pode ter uma certa aflição por se afastar do mundo natural, da “abençoada ignorância” dos animais, por exemplo. É uma metáfora, falando sobre a dor e o terror de estar numa terra árida e inóspita (fora do Éden, onde “o solo será maldito por tua causa”). A dor é ainda maior porque ainda sobra uma árvore no Jardim, a da Vida Eterna. Sem ela, “ao pó voltarás”.
Um terceiro e mais abstrato nível pode se referir à solidão do conhecimento. Aquele que muito sabe pode acabar se afastando dos outros, para descobrir mais ou continuar sua jornada. Ou então que aquele que conhece tem uma certa responsabilidade para aqueles que não tem o conhecimento. De qualquer maneira, são poucos os que sabem, o que os isola. O arquétipo do cientista e pesquisador é solitário, não é verdade?
De qualquer maneira, o conhecimento proibido é algo que sempre esteve em jogo para a raça humana. Proibido por entidades divinas, proibido por ser doloroso, proibido por ser excludente. É a luz da razão, mas também é a fogueira dos descrentes. Apesar de tudo, a própria Bíblia diz, em Gênesis 3, 22: “O Senhor Deus disse: 'Eis que o homem tornou-se como um de nós, pelo conhecimento do bem e do mal(...)'”. Pelo menos, a humanidade se posiciona ao lado do infinito por conhecer. Pode ser doloroso, mas as mariposas também são atraídas pelo fogo.